Viver não é tarefa fácil
- Alessandra Medeiros

- 28 de nov. de 2024
- 3 min de leitura
Nos últimos meses, venho conduzindo meus estudos e registrando reflexões em torno de uma ideia central: viver não é tarefa fácil. Contudo, é importante ressaltar que não são as narrativas das dificuldades que ocupam o centro das minhas reflexões. Meu foco está na relação que as pessoas mantêm com esses aspectos dificultosos da existência.
A vida é composta por alegrias, descobertas, dores, perdas e transformações. Apesar disso, o discurso social predominante parece empenhado em rejeitar ou minimizar as experiências negativas, tratando-as como desvios que precisam ser corrigidos.
A vida é, por natureza, mutável e fora do controle pleno de qualquer pessoa. Como Clarice Lispector disse: “Só o que está morto não muda”. Ainda assim, somos educados a perseguir ideais de permanência e completude, como se fosse possível atingir um estado de satisfação permanente apenas pela força de vontade.
Essa é uma das heranças de sistemas de pensamento que priorizam a “força do querer” como solução universal, mas que, na prática, afastam os indivíduos de si mesmos e do mundo.
Essa dinâmica de rejeição às experiências negativas reflete sistemas de pensamento que não apenas moldam a forma como lidamos com nossas próprias dificuldades, mas também como estruturamos nossos valores sociais. Nessa perspectiva, pensadores como Charles Taylor e Antônio Cândido oferecem reflexões valiosas sobre os impactos dessa lógica no nível individual e coletivo.
Charles Taylor, em As Fontes do Self: A Construção da Identidade Moderna, aponta que, embora reconheçamos a multiplicidade de expressões culturais, nossa interação social segue limitada por valores das classes dominantes, perpetuando angústias individuais e exclusões baseadas em diferenças.
Antônio Cândido, ao discutir direitos humanos e literatura, questiona a tendência à tecnicização dos problemas sociais e suas possíveis soluções, sugerindo que a técnica muitas vezes nos distancia de uma prática que promova uma transformação real. Ele enfatiza que os direitos humanos pressupõem reconhecer que o que consideramos essencial para nós é também essencial para o outro, algo que requer educação e autoeducação constantes, em movimento.
A respeito da inclusão do outro no mesmo elenco de bens que se reivindica, Cândido conduz sua fala distinguindo os bens compreensíveis dos incompressíveis, já que esta distinção está ligada ao problema central do seu trabalho em questão. Afinal, como definir o que é necessário ou não para o ser humano? O que não se pode negar a ninguém? Quem define o valor das coisas?
Cada época e cada cultura atribui a seu modo esses valores, porém, o fato de a classe dominante ser responsável por essa atribuição é comum a todas.
Assim, mesmo que na prática seja diferente, no diálogo a respeito dos bens compreensíveis, como alimentação, saúde e moradia, existe um consenso que valida esses acessos como direitos básicos de todo ser humano, porém, os bens incompreensíveis, como a arte e a literatura, são frequentemente são negligenciados.
Contudo, é através desses bens que garantimos não apenas a sobrevivência física, mas também a integridade espiritual do sujeito. A literatura, como Cândido diz, não apenas humaniza, mas também nos ensina a lidar com a angústia da existência, possibilitando-nos criar e reimaginar nossa relação com o mundo e com os seus sofrimentos.
Freud, em Tratamento Psíquico (Tratamento Anímico), argumenta que o sofrimento psíquico, muitas vezes ignorado pela medicina científica, é essencialmente humano. Ele enfatiza a importância da escuta e do reconhecimento das dores que "ninguém" quer ouvir. Nesse sentido, a proposta de trabalhar a saúde mental sob uma perspectiva libertadora, como defendida desde a Reforma Psiquiátrica de 1989, visa integrar indivíduos e diferenças, promovendo ganhos para toda a sociedade.
Nessa perspectiva, um sistema de saúde como o SUS precisa acompanhar as transformações da sociedade, garantindo não apenas cuidados preventivos e emergenciais, mas também promovendo a inclusão das diferenças e o fortalecimento do sujeito. Grupos terapêuticos, por exemplo, são instrumentos potentes para promover o reconhecimento e a aceitação da pluralidade.
Acredito que a arte e a literatura se apresentam como ferramentas cruciais nesse processo de aceitação da vida e de suas dificuldades. Como afirma Cândido, a literatura humaniza ao despertar em nós traços essenciais como reflexão, sensibilidade e compreensão. Ela nos conecta à complexidade da vida e das relações humanas, enriquecendo não apenas o indivíduo, mas também a sociedade.
Em uma era de barbárie civilizada, resgatar e valorizar esses bens incompreensíveis é um passo fundamental para reconstruírmos o sentido de viver como uma experiência coletiva e transformadora, que considere a beleza e as alegrias, o horror, a dor e as dificuldades de viver.
Referências
CÂNDIDO, Antônio. Direitos humanos e literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
FREUD, Sigmund. Tratamento psíquico (tratamento anímico). In: FREUD, S. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1984.
TAYLOR, Charles. As fontes do self: a construção da identidade moderna. São Paulo: Loyola, 1997.



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